18 maio 2009

Primeira mão


Ontem fui beber um copo com um amigo que já não via há algum tempo. Não era minha intenção falar-lhe dos meus problemas pessoais, mas conversa puxa conversa e, ao fim da terceira taça de branco, não me contive e pu-lo ao corrente do imbróglio em que andava metido.
Como se já não bastassem os problemas no trabalho e em casa, tinha ainda uns tipos atrás de mim, por causa de uns dinheiros que ficara a dever. Há dois dias quase tinha sido atropelado por uma carrinha cinzenta e não me surpreenderia se, de repente, levasse um tiro.
"Não te preocupes tanto", reconfortou-me o meu amigo. "Tens é de olhar para as coisas com um espírito positivo. Só os paranóicos vêem indícios de ameaça em tudo o que mexe".
Tentei explicar-lhe que os meus problemas eram reais. O empréstimo, a dívida. Aquilo era gente que não brincava. Mas ele sorriu e continuou:
"Nós temos de fazer exactamente o contrário. Não ceder ao medo. Ser positivo. Se um pessimista vir um copo com água até metade, diz que ele está meio vazio. Nós temos de ver é que ele está meio cheio, percebes?".
Percebia. Não sou estúpido. Mas - e se tivermos problemas a sério? Se os nossos problemas forem tão reais como o risco de uma catástrofe nuclear?
Ele abriu ainda mais o sorriso. Era meu amigo, mas já me começava a irritar. Pôs-me a mão no ombro, num gesto mais paternal que fraternal.
"Mesmo que estejamos verdadeiramente ameaçados, cercados de inimigos por todos os lados, temos de ignorar essa ameaça. Se a ignorarmos, por mais real que ela seja, desvanece-se nesse instante".
Mostrei-me incrédulo:
"Assim, clic?" Ele era o Karma em pessoa
"Assim, clic. Deixa completamente de existir. Tal é o poder da mente".
Que é que eu podia dizer perante uma tal filosofia? Fiz sinal a pedir outro copo. E mais cheio que o outro, que tinha vindo meio vazio. E ele na dele, embalado: "Sei o que estás a pensar e não, não é o mesmo que a avestruz, a meter a cabeça na areia para ignorar o perigo. É diferente. Nós não ignoramos o perigo. Nós eliminamos o perigo. Percebes?"
Sim percebia. E por acaso, não sei se da conversa, se do vinho, fiquei mais calmo. E percebi ainda mais quando, à saída do bar, a bala acertou na cabeça dele, e não na minha. Tive de dar a mão à palmatória, a fómula do meu amigo funcionava. Bastava não pensar nos problemas para eles nos passarem ao lado.

Rui Zink in A Realidade Agora a Cores, (Publicações Europa América)

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