15 julho 2009

A Avó

Fechou o portão da cerca e prendeu a cancela com o arame ferrugento. Não se afastou logo… ficou ali parada, a olhar as cabras que se juntavam no bebedouro e sorviam toda a água que podiam, numa luta de encontrões em que as maiores tomavam a primazia.
A brisa trouxe-lhe o cheiro quente do restolho e sorriu enquanto o olhar se estende para a lonjura do horizonte, onde o sol se deita, lá para os lados de Messejana e, mais longe, Odemira.
O pensamento voa agora com o olhar e traz uma sombra ao rosto, enquanto o peito é inundado por uma a angústia sem nome.
Por entre a água que lhe humedece os olhos, é como se Rosa visse, naquele segundo antes de escurecer, o castelo onde vivera a infância, embrulhada nos contos mágicos e nas lendas fantasiosas da avó. E lembra:

“Vocemecê dá-me com a miúda em doida” ralhava a mãe quando a vinha buscar depois das semanas de ceifa em Ferreira.
“Não ligues, Vó… não te importes com o que diz a Mãe…” Amanhã venho para ouvir a história da Moira e do Toiro. Contas, pois contas, Vó?” - perguntava Rosa, os olhos abertos e o rosto colado ao da velhota, sentada junto ao lume.
“ Rosa, Rosa, deixa de dar à língua, cachopa!”. “Tu apanhas, tu apanhas!” - gritava a Mãe a arrastá-la de novo.
Pela noite, na cama minúscula, antes do sono chegar, Rosa recordava as palavras da Avó e todas as histórias já ouvidas. Contos de princesas, alcaides e castelos…
“Era um castelo como o nosso, Vó?” - interrompia Rosa.
“Maior, muito maior” - dizia a velhota com os olhos brilhantes…. “Com muralhas até ao céu…”

Agora, a escuridão já ocupou o céu e trouxe Rosa à realidade, tão longe da Avó. Falou ao gado, desejando boa noite, e caminhou para a casa térrea.
Tinha de encher a lamparina antes de entrar. Quando se instalaram ali, depois do casamento, Toino dissera-lhe que a luz não lhes faria falta,
“ Isso são manias que te ficaram da tua Avó.” respondera com brusquidão, quando ela fizera a sugestão de ter electricidade. “ gastos de rico, mordomias”…
“Pra cozer a roupa, homem, ou chegar-te alguma coisa que precises depois da deita…”
“Gastos de rico, te digo! Quem se deita antes do sol se pôr e se levanta quando começa o dia, não tem precisão… fantasias daquela velha".

Era bem verdade que a luz a lançar sombras nas paredes lhe trazia a lembrança das histórias aprendidas em casa da Maria do Pranto, sua Avó.
Mulher conhecida em todos os lugares da freguesia de Messejana e até mesmo em Aljustrel. Fazia benzeduras, tirava mau-olhado, mas sobretudo punha gente no mundo.
Tantas vezes, de noite, acordara com o povo a bater à porta da Avó:
“Oh da casa, Maria do Pranto…venha depressa, mulher…”. E ela corria aonde a chamavam.
“Não me canso de pôr gente no mundo, filha” - dizia sempre que ela lhe perguntava se não se importava de sair da cama a toda a hora.

Nunca me habituei à sua ausência - pensa Rosa, sentada na mesa da cozinha. Olha a chama do candeeiro e sorri às memórias… Uma vida carregada de perdas. O Pai… Não, o Pai não é perda; nunca o viu, então não é perda.
“Um Ganhão, sem eira nem beira” - dissera-lhe a Mãe das poucas vezes que quis saber do Pai. “ Nunca soube o destino que levou…”
A Avó fora sempre prudente nos comentários, dali nunca apurou nada…
“Uma peça, filha, aquilo era uma peça… e levou a tua Mãe no seu canto… Desgraçou-a, foi o que foi”…
Depois Rosa casou. Nasceram os filhos, ainda com ajuda das mãos da Avó, e a Mãe morreu logo a seguir. Talvez fosse tudo isso o que lhe apagou a vontade de saber do Pai.
É verdade que, por vezes, sentira muito a sua falta. Sobretudo quando, já sem a Avó, tivera de enfrentar sozinha o grande desafio da sua vida. Uma provação bem mais difícil do que era esta de ter os dois filhos na guerra, lá longe, numa África que só conhecia de nome e de dor.
Por mais duros que fossem estes tempos, não tinham o perigo que tivera de enfrentar, dentro de casa, naquele inverno que não quer lembrar.

9 comentários:

C. disse...

Bom... e a teia prende, a linguagem enreda, faz-nos prisioneiros da efabulação. Que mais se pede a uma narrativa?

(Se calhar nunca pensaste nisso, mas eu acho intrigante, nos teus contos, o tratamento dado às figuras masculinas - pais, namorados ou maridos.)
:-) :-)
Bj de parabéns.

AC disse...

Excelente!...Embarquei nas palavras e viajei até ao tempo da minha avó...que saudades dela!Das crenças , valores e de uma pobreza tão mais rica do que a riqueza que actualmente se ostenta...
Obrigada por mais um excelente momento.

AC

Marta disse...

mil parabéns, Paulo!

Excelente! Prende

até bem depois do ponto final!

clara disse...

muito bonito o teu conto, ágil, sem rodriguinhos, uma prosa segura e sóbria.
Esperamos pelo livro!

Anónimo disse...

Parabéns!
Mais uma belíssima efabulação.

E também digo: venha o livro :)

LM

Anónimo disse...

Uma viagem emotiva ao colo das nossas avós, que sempre teve a magia de nos fazer acreditar que o melhor das nossas vidas ainda está para acontecer...
Mais um momento brilhante...
gostei muito!
CM

Paulo disse...

C.,intrigante, de facto, o tratamento que dou às figuras masculinas... vou "trabalhar" isso :):):)
AC, se deu para embarcar e viajar fico contente.
Marta, Clara, LM, obrigado pelo vosso estímulo.
CM, tivemos colo...isso é mágico.

Anónimo disse...

Excelente Paulo... A rapidez com que contas é digna de nota .
Não te perdes em detalhes , e nós que lemos não nos sentimos perdidos . Nós , quer dizer , eu ... Andei lá pelo Alentejo e não só, senti-me muitas vezes convocado!
Gostei , também do título , aliás gosto dos titulos , assim precisos...
abraço
_______ JRMARTO

miri disse...

Ainda bem que me disseste o nome do teu blog. Estou a adorar e vou voltar muitas vezes. Gosto muito da forma como pintas as expressões e como passas para quem te lê o que sentes...É como assistir a um filme com cheiros e sensações e sensorializações :)...
Obrigada pela partilha.
Beijinho
Marta