18 julho 2009

Foram Muito Felizes (conclusão)


Anoitecia e Julieta apareceu ao portão, chamando Tê.
-É por causa do meu pai, ele quer falar contigo e já. Pede que lá vás, tem que ser já!
Julieta que a puxava e Tê a ver tudo à roda, de repente, cinzento e verde. Duas cores que Tê visualiza, quando sobe a adrenalina. Devia ser amarelo, mas não, é cinzento e verde.
A casa baixa, o cheiro não é propriamente o perfume do Cenoura, muito menos o do professor. A porta e, a seguir, um cortinado às flores, depois umas pernas deitadas na cama pobre. Um corpo e, no fim do corpo, uma cabeça, uma cara, um bigode. Na mão, o cigarro. À volta, cinzento e verde.
Tê estava em casa do cigano.
E o cigano perguntou:
-É verdade que deu essas brincadeiras à Julieta?
-É, fui eu que dei.
-Era só para saber, não quero que a Julieta roube nada. De certeza?
-É, é verdade, fui eu. (cinzento e verde).
-Então está bem, pode ir embora.
Não agradeceu. Só disse: pode ir embora. Tê sorriu aliviada. Já não teve medo e achou o homem simpático, embora com o tal olhar. Moralmente superior, uma felina dignidade.
O mistério desaparecera. Acabava o medo dos ciganos, por isso não voltou a brincar com Julieta Bota.
Hoje ela trata-a por menina. São da mesma idade, mas há um fosso, ou uma cumplicidade.
Julieta passa com os filhos. Tê anda no Liceu.
Há duas coisas que Tê não esquece: os sapatos do cigano, em cima da cama e o olhar selvagem.
Do olhar, já se sabe que é selvagem e já se disse tudo, dos sapatos ainda não.
Os sapatos dos ciganos são diferentes de tudo. Normalmente são castanhos e mais bicudos. Vulgarmente têm aqueles furinhos,até de Inverno. Como os ciganos,têm espelhados na pele as longas caminhadas. Não são, simplesmente, uns sapatos velhos. São uns sapatos vividos, e nas rugas do couro, podemos ouvir segredos, negócios estranhos, grandes amores. Se forem pretos, têm o salto um pouco mais alto e remetem para danças e brigas, salero, espanholices e coisas assim.
Também os sapatos das ciganas...

Muitas luas passaram.
O Liceu lá está, imóvel.
Julieta continua a deambular com a filharada, todos em bando, já tem netos.
Nós andamos por aí.
Do professor nada sabemos.Desapareceu, quando foi expulso,por ser diferente e honesto.
O Cenoura guia enormes automóveis e há quem o acuse de golpadas e negócios escuros. Sempre-de-lenço-ao-pescoço.
Uns teimam em não se acomodar, buscam sempre o impossível. Estão, por isso, envelhecidos, embora bronzeados,embora in, estão cansados.
Outros foram muito felizes.
Todos tiveram meninos.

(pintura de Miró)

4 comentários:

Paulo disse...

Gostei do teu conto, Clara. Gosto da Tê, da Julieta e do pai cigano. Gosto também do Professor e do Cenoura. São-me todos familiares. Gostei.

PAS[Ç]SOS disse...

Porque a felicidade não será alcançável pelos que não se sentam pensam diariamente que amanhã, amanhã sim, o futuro será diferente.

clara disse...

Obrigada!
Vou procurar os papéis, porque esta história tinha continuação.

Marta disse...

finais felizes, como gosto!
vendo a alma por um final feliz!

Parabéns, Clara :)