08 julho 2009

O noviço

O fresco da madrugada afagou-lhe o rosto ainda ensonado, enquanto se esforçava por abrir a pesada porta de madeira.
Deslizou suavemente no estreito espaço entre o umbral e correu pelo caminho de terra que, através das vinhas do mosteiro, descia até ao pequeno riacho, agora quase seco.
Nascia mais um dia do Verão de 1561. Sebastião Vaz, depois de muito hesitar e após uma longa e dolorosa reflexão, decidira abandonar o lugar onde, aos 9 anos, fora deixado por sua mãe, Beatriz.
Ali vivera os últimos cinco anos, aprendendo a ser um homem de Deus, como lhe repetia, vezes sem conta, o seu confessor e mestre João Salovino.
Hoje seria a primeira vez que faltaria às Laudes. Embora a sua ausência fosse notada de imediato, sabia que só muito mais tarde o iriam procurar.
Ao primeiro toque do sino, os frades viriam até à capela e depois de fazerem os louvores da manhã, entrariam no refeitório. Esse seria o momento em que Mestre João notaria um lugar vazio. Antes, estaria absorvido demais para olhar à volta, pois aquela hora na capela era de elevação e êxtase: braços em cruz, joelhos na pedra, Mestre João conseguia ver Cristo.
Mil vezes lho disse: - “se fechares os olhos durante a oração, vás a ver-Lo, cerra os olhos e guarda Sebastion, ali está Ele, eu sei que non é um sonho” dizia, com os olhos congestionados e todos os músculos rígidos por baixo do hábito negro.
Ao princípio o som aragonês fazia rir Sebastião, distraindo-o do que o frade dizia. Depois, com a ajuda de alguns puxões de orelhas, desligou do linguajar e passou a ouvir com interesse, quantas vezes com espanto e sempre com devoção.
“O início do dia está siempre ligado à ressurreiçon” dizia grave, “ sei que é o Seu rosto que vejo a sorrir. Ele aparece para nos compensar de tanta entrega”.
E se observava espanto no olhar do seu discípulo, acrescentava com um olhar perdido: “ só quem acredita O verá, Sebastion”. "Reza, jejua, sacrifica-te e verás o Seu sorriso. Então, com o Seu olhar a guiar tu camino, verás como serás recompensado e chegarás junto d’Ele”.

Nas longas conversas que tinham,às perguntas que Sebastião fazia, das simples às mais rebuscadas, fosse a dúvida sobre o facto de os patos voarem em bando, ou onde faziam ninho as andorinhas no Inverno, até à dolorosa questão de saber onde residia a sua culpa ao sentir vontade de conhecer o corpo e os seus mistérios, a todas as questões Mestre João respondia com a mesma fórmula: ajoelhar, rezar e jejuar. "As respostas viron depois con Sua graça".

A necessidade de compreensão obcecava Sebastião desde criança. Aprendera da mãe as estações do ano, a cíclica transformação das árvores e o milagre das ovelhas e das suas crias. Recordava o olhar gélido que o mestre lhe lançava quando ele questionava a intervenção divina nestes acontecimentos.

Agora tinha de chegar rápido, e sem ser visto, ao pequeno riacho, que no Verão era um fiozinho de água, correndo até ao rio grande que ia para Coimbra.
“Cidade mui grande, de muchos sábios”, dissera-lhe num outro Verão o Mestre. “A tua mãe deve por lá andar em busca de teu pai”, acrescentou.
Durante muito tempo sentiu a necessidade de sair do mosteiro e procurar a mãe e o pai. Depois decidira interessar-se mais pela vida espiritual. Tinha o sonho de ser cumpridor e virtuoso, de forma a conseguir também ver as barbas de Cristo e o seu rosto anguloso a sorrir-lhe, como Mestre João.
Tomara essa decisão depois de saber que seu pai não era um erudito nem um religioso, como chegara a acreditar, mas um tal Belchior Vaz, o algoz de Coimbra.
Só de recordar que muitas noites tinha adormecido abafando as lágrimas por nunca ter sentido no rosto as mãos do pai, ficava arrepiado ao imaginá-las a fazer correr o laço de corda no pescoço dos hereges, como lhe tinham contado.
Custava-lhe entender como o confessor se empolgava ao elogiar esse mister. Para ele, tudo o que sentia era medo.

Idêntico pavor era o que lhe invadia ultimamente o peito, quando mestre João o obrigava a cumprir castigos cada vez mais exigentes, como forma de corrigir a sua busca duma razão clara para as coisas.

Finalmente chegou, ofegante, ao riacho. Alcançaria a outra margem sem dificuldade, embora ainda molhasse as sandálias de couro que um mercador de passagem no mosteiro lhe trocara por duas dúzias de ovos e um saco de avelãs.
Tinha agora de atravessar vários casais e terras, pertenças de lavradores que conhecia, frequentadores do mosteiro, onde pagavam tributos.
Queria afastar-se rapidamente destes lugares sem que o vissem. Precisava chegar à estrada grande antes do sol subir.
Não podia perder tempo se queria encontrar o que procurava.

3 comentários:

clara disse...

Grande texto, Paulo, conseguiste muito bem dar a ambiência de época!
Naquele tempo, os conventos eram a fuga à pobreza, mas a que custo.

JOSÉ RIBEIRO MARTO disse...

Excelente ... Um prazer , rápido como a corrida do miúdo , de detalhe rigoroso , no sítio certo ... Conto de iniciação !
Lê-se sem perder nada !
Um abraço

_________ JRMarto

Marta disse...

E mais? :)

Gostei tanto; íssimo!