08 novembro 2009

aqui está um texto que eu subscrevo sem hesitar







Os intocáveis
2009-11-02


O processo Face Oculta deu-me, finalmente, resposta à pergunta que fiz ao ministro da Presidência Pedro Silva Pereira - se no sector do Estado que lhe estava confiado havia ambiente para trocas de favores por dinheiro. Pedro Silva Pereira respondeu-me na altura que a minha pergunta era insultuosa.
Agora, o despacho judicial que descreve a rede de corrupção que abrange o mundo da sucata, executivos da alta finança e agentes do Estado, responde-me ao que Silva Pereira fugiu: Que sim. Havia esse ambiente. E diz mais. Diz que continua a haver. A brilhante investigação do Ministério Público e da Polícia Judiciária de Aveiro revela um universo de roubalheira demasiado gritante para ser encoberto por segredos de justiça.
O país tem de saber de tudo porque por cada sucateiro que dá um Mercedes topo de gama a um agente do Estado há 50 famílias desempregadas. É dinheiro público que paga concursos viciados, subornos e sinecuras. Com a lentidão da Justiça e a panóplia de artifícios dilatórios à disposição dos advogados, os silêncios dão aos criminosos tempo. Tempo para que os delitos caiam no esquecimento e a prática de crimes na habituação. Foi para isso que o primeiro-ministro contribuiu quando, questionado sobre a Face Oculta, respondeu: "O Senhor jornalista devia saber que eu não comento processos judiciais em curso (…)". O "Senhor jornalista" provavelmente já sabia, mas se calhar julgava que Sócrates tinha mudado neste mandato. Armando Vara é seu camarada de partido, seu amigo, foi seu colega de governo e seu companheiro de carteira nessa escola de saber que era a Universidade Independente. Licenciaram-se os dois nas ciências lá disponíveis quase na mesma altura. Mas sobretudo, Vara geria (de facto ainda gere) milhões em dinheiros públicos. Por esses, Sócrates tem de responder. Tal como tem de responder pelos valores do património nacional que lhe foram e ainda estão confiados e que à força de milhões de libras esterlinas podem ter sido lesados no Freeport.
Face ao que (felizmente) já se sabe sobre as redes de corrupção em Portugal, um chefe de Governo não se pode refugiar no "no comment" a que a Justiça supostamente o obriga, porque a Justiça não o obriga a nada disso. Pelo contrário. Exige-lhe que fale. Que diga que estas práticas não podem ser toleradas e que dê conta do que está a fazer para lhes pôr um fim. Declarações idênticas de não-comentário têm sido produzidas pelo presidente Cavaco Silva sobre o Freeport, sobre Lopes da Mota, sobre o BPN, sobre a SLN, sobre Dias Loureiro, sobre Oliveira Costa e tudo o mais que tem lançado dúvidas sobre a lisura da nossa vida pública. Estes silêncios que variam entre o ameaçador, o irónico e o cínico, estão a dar ao país uma mensagem clara: os agentes do Estado protegem-se uns aos outros com silêncios cúmplices sempre que um deles é apanhado com as calças na mão (ou sem elas) violando crianças da Casa Pia, roubando carris para vender na sucata, viabilizando centros comerciais em cima de reservas naturais, comprando habilitações para preencher os vazios humanísticos que a aculturação deixou em aberto ou aceitando acções não cotadas de uma qualquer obscuridade empresarial que rendem 147,5% ao ano. Lida cá fora a mensagem traduz-se na simplicidade brutal do mais interiorizado conceito em Portugal: nos grandes ninguém toca.

Mário Crespo , Jornal de Notícias

5 comentários:

joao amorim disse...

infelizmente é verdade...

cumps

Paulo disse...

jP, sem dúvida; mas felizmente começa a surgir uma "opinião pública". Entre nós tem havido a tradição e o hábito de sentir "o Estado" como uma entidade alheia ("eles") e não como algo que pertence a todos. Isso parece começar a mudar. Ou seja a ideia que que são todos iguais, de que "desde que faça coisas para a minha terra" pode roubar porque, afinal, todos roubam... isto tem de mudar para uma atitude de exigência por parte dos cidadãos.
Acho que todos temos responsabilidades (entretanto, também não vi ainda censura destes comportamentos por parte das igrejas ou das organizações empresariais, que são fazedores de opinião). Bom domingo.

A disse...

A resposta da «alma gémea» de Sócrates a Mário Crespo é que me pareceu insultuosa.
É que estes senhores, de facto, comportam-se como elite de intocáveis, esquecendo-se que a vida que levam é à custa dos nossos impostos e que o escrutínio do que fazem e não fazem está incluído nas regras da democracia.
Aliás, o que se está a descobrir só prova a necessidade fundamental e ininterrupta desse escrutínio.
Oportuníssimo este post e excelente escrito este, de Mário Crespo.

Paulo disse...

Austeriana, todos os dias surgem factos que obrigam, como diz, a um escrutínio permanente de quem está - temporariamente- a gerir o que é de todos. Penso que a necessidade desse controle se tornará mais óbvia se houver por parte dos governados a consciência de que os bens públicos são nossos, não "deles".Vai levar ainda algum tempo, mas começa a haver mudanças. Cumprimentos.

via disse...

por essas e outras é que acabamos todos de costas voltadas à política e aos políticos...