Neste início do século, sobretudo nas sociedades ocidentais, a doença e a morte são acontecimentos estranhos, misteriosas e, em larga medida e qualquer circunstância, inaceitáveis. Abrimos uma excepção para as doenças terminais em que aceitamos, às vezes exigimos, a morte como forma de alívio ao sofrimento (sobretudo o nosso).
Construiu-se um conjunto de expectativas em torno da saúde e do corpo que se tornaram dominantes na sociedade: esperamos sentir-nos bem, sem incapacidades, dores ou desconforto até muito tarde. Sempre, se possível.
É intolerável a morte de uma criança e espera-se que todas tenham uma infância sem doenças, que as mulheres tenham filhos sem complicações e que qualquer intervenção cirúrgica seja sempre bem sucedida.
O facto de, quase sempre, estas expectativas se concretizarem faz com que a "verdade" de reforce.
A saúde, o bem estar e a ausência de sofrimento tornaram-se uma forma de religião em que o falhanço e o inexplicável não é aceite, justamente porque a Medicina se tornou uma crença.
E não é.
(É do conhecimento público a especulação em torno das recentes mortes fetais e da sua utilidade na abertura de telejornais. Sente-se, como sempre, a necessidade de encontrar a causa, a razão, a culpa para o incompreensível que se rejeita; para mais, com o drama de uma previsão de mais 30 mortes até ao fim de Dezembro.
A resposta das autoridades, sobretudo depois de terem explorado o medo até à nausea, é a negação pura e simples. Nada que ponha em causa os seus dogmas. É outra crença.)
Pintura: The Doctor, Luke Fildes (O quadro inspira-se no momento em que o médico observava Philip, o filho do pintor, pouco antes da sua morte, no Natal de 1877).
4 comentários:
O século XX deixou-nos, no mundo Ocidental, esta marca, que não é saudavel, que é a falta de convivência com a morte.
A proliferação e disseminação das vacinas, a im~plemantação do saneamento básico e dos cuidados básicos de saúde, aumentaram, em muito, a esperança média de vida, diminuiram drásticamente a mortalidade infantil, bem como a mortalidade das grávidas e parturientes.
O século XX erradicou a morte do nosso convívio diário e passámos a ter pudor em falar dela, em enfrentá-la e pior, deixámos de preparar os nossos filhos para essa eventualidade, que noutros tempos, infelizmente, era parte do quotidiano.
Ainda bem que há cuidados de saúde básicos, ainda bem que já não vivemos no meio dos esgotos e da lama na via pública, ainda bem que os hábitos de higiene se massificaram e ainda bem que há bons médicos, enfermeiros, farmaceuticos, químicos e bons medicamentos.
Contudo, a morte existe. Faz parte do processo. É duro enfrentá-la. É injusta, mas inevitável.
Se temos uma educação para a vida, deveríamos ter uma educação para a morte!
Olha, Paulo, sobre esse assunto, só me vem à memória uma verso de Fernando Assis Pacheco:
"Morre-se muito prá aí".
marteodora,cultivamos a morte "branca". Asséptica, longe de casa, da família, dos amigos. Criam-se espaços (nos hospitais) para se morrer rodeados de gente preparada para lidar com esta condição. Sobretudo porque passou a ser intolerávela convivência com o final da vida. A morte não deixou de fazer parte do quotidiano, a sociedade é que a excluiu do palco; mandou-a para os bastidores porque fica mal no espectáculo.
Clara,o Assis tinha razão, morre-se a toda a hora.
È verdade da morte selvagem passou-se para a morte domesticada como explicou Philipe Ariés... A morte já não é assunto de famìlia como outrora foi,e agora assunto do Estado, é a morte do outro , do doente, e não a nossa morte , a morte que não assumimos como condição individual ...
Quanto à medicina não ser uma crença , ainda bem , que assim não è !
Abraço
_______ JRMARTO
Enviar um comentário