- Podemos ficar já aqui, não? - ela.
- Não, aqui não podemos, tia... Vamos lá mais para o pé da rotunda.
- Mas não podemos ficar aqui, nesta praia tão "verzul"? - ela sorriu para mim.
- Não, tia, aqui não se pode. Esta tão praia verzul é dos soviéticos.
- Dos soviéticos?! Esta praia é dos angolanos!
- Sim, não foi isso que eu quis dizer...É que só os soviéticos é que podem tomar banho nessa praia. Vês aqueles militares ali nas pontas?
- Vejo sim...
- Eles estão a guardar a praia enquanto outros soviéticos estão lá a tomar banho. Não vale a pena ir lá que eles são muito maldispostos.
- Mas porquê que essa praia é dos soviéticos?- agora sim, ela estava mesmo espantada.
- Não sei, não sei mesmo. Se calhar nós também devíamos ter uma praia só de angolanos lá na União Soviética...
Ondjaki, Bom dia Camaradas, Ed.Caminho, 2001
A infância em Luanda nos anos 80, um tempo de incerteza e muitos perigos, vistos pelo olhar mágico de uma criança.
Uma narrativa assumidamente autobiográfica, que vale também como um relato histórico de um tempo que fundou a Angola de hoje.
*Ondjaki, na apresentação do livro
9 comentários:
A memória dorme connosco
Adoro o Ondjaki, um dos meus autores preferidos de literatura infantil. Tenho de conhecer melhor a sua obra para adultos (se bem que a literatura infantil deveria ser de leitura obrigatória também para adultos!).
Verdadeiríssimo.
muito bom, Paulo. e a imagem fabulosa.
...um caminho que aprendi aqui.
obrigada mais uma vez.
beijinhos
CNS, carregamos connosco os cheiros, as pessoas e os momentos do nosso "antigamente". Isso é muito do que somos também.
marteodora, concordo e acho artificial a distinção entre literatura infantil e adulta (ou feminina e masculina ou...) como na música, há a boa e ...a outra.
Ondjaki é, definitivamente, boa literatura.
Austeriana, obrigado, e é o mais difícil... ser verdadeiro.
Marta, olá, eu é que agradeço. Ondjaki é um vício excelente (como a maioria):):)
Tenho de ler Ondjaki, mas talvez já não o faça num dia versul , mas sim num dia de nevoeiro como os que fazem cá por Lisboa .
Perto de uma janela seria ideal !
Abraço
_____ JRMARTo
Ainda não li, deve ser bom, mas não me debrucei.
A imagem é elucidativa, o contexto é o que tínhamos, ou temos.
As lutas e o mundo que, às vezes, parece que anda ao contrário.
Continua atento, Paulo.
Como já disse ao José Marto, sobre um belíssimo poema que ele deixou no "Va Andando", temos geralmente a tentação de mitificar esse tempo da infância. Porque o olhar só é mágico enquando a vivemos. E é esse olhar que tivemos, o que gostaríamos de recuperar, uma vez ou outra. Impossível, claro está. Daí a infância ser, quase sempre, fonte de nostalgia.
Olá, Paulo
Eu ainda não li o livro. Mas a imagem tocou-me profundamente. Passei a minha infância em Angola, ainda que nos anos 70. A Angola dos 80 já me escapa um pouco, mas a nostalgia permanece...
Um abraço
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