04 novembro 2009

caminhando sozinha pela berma da estrada


Fui ao quarto fazer-lhe umas festas na cabeça, mas ela nem se mexeu. "Não tinhas aulas, hoje? Não queres tomar o pequeno almoço? Queres que te vá buscar o comprimido?" A minha mulher está com umas olheiras roxas, já nem consegue chorar, fica de olhos abertos a seco toda a noite. "Fizeste o exercício que te ensinei?" Os dardos ainda estão em cima da mesinha-de-cabeceira e a fotografia pregada na parede. Devagar virou-se para mim, pegou-me na mão, pediu numa vozinha sumida: "Não me obrigues a ir à escola, tiozinho, eu não aguento mais ir à escola!" Quando é que acaba o atestado, desta vez?" Já tinha acabado há uma semana. "Não queres atirar uns dardos, que te sentes logo melhor?" Ela gemeu. "Não consigo pôr-me agora a atirar dardos à fotografia do 8ºC! Como é que vou ter cara para os enfrentar?" "Eles não sabem que tu atiras dardos à fotografia". "Nem podem saber!" disse ela. "É completamente antipedagógico." O "antipedagógico" já foi dito num guincho, porque a pedagogia é uma coisa que inquieta a minha mulher. Abracei-a e dei-lhe o comprimido. "Não consigo enfrentar as aulas da tarde" disse ela. E voltou a deitar-se. "Nem sequer estou afónica!" (...) Tapou-se e ficou a olhar para a janela. Era um molusco, a minha mulher, uma esquiva trouxa mole, escorregadia, que se ia embora sozinha, com apenas um par de meias lavadas, numa jornada impossível. Era isso que eu via, quando chegava a casa e a encontrava deitada e tapada até às orelhas: uma trouxa de roupa espetada num pau caminhando sozinha pela berma da estrada, peregrina. Era uma maldita viagem interior à escuridão dela, onde não podia acompanhá-la. Naquele momento senti-me tão abandonado que fiquei capaz de lhe bater. Fui eu mesmo que atirei um dardo à fotografia da turma-problema. Cheguei-me à parede e vi que a minha mulher tinha escrito em letras muito pequeninas nas testas dos miúdos: "amar o próximo como a nós mesmos e outros legítimos superiores". Era amor não correspondido o que ela sentia pelo 8ºC.
Luisa Costa Gomes, in Ilusão (Ou o Que Quiserem), D.Quixote,2009
Fotografia G. Crewdson


Ilusão ( Ou o Que Quiserem), o romance de Luisa Costa Gomes, é a esplêndida narrativa de uma viagem de busca de projectos e de procura de sentido para a vida; de uma separação e de uma paixão. Afinal, um relato do quotidiano. Uma leitura necessária.

3 comentários:

A disse...

Conheço várias histórias verídicas parecidas com esta, infelizmente.

Nesta conjuntura de expectativas quanto ao desenrolar das alterações ao Novo Estatuto da Carreira Docente e de situações complexas nas escolas, o excerto publicado é muitíssimo oportuno.
Não conheço esta obra mas gosto muito da escrita de L.C. Gomes. Também desconhecia este belo trabalho de G. Crewdson.
Obrigada pela divulgação. Vou tentar descobrir mais!
Abraço.

MJ FALCÃO disse...

Não li o livro, mas acho o texto muito bom, E a fotografia escolhida é óptima! Faz-me lembrar alguns pré-rafaelitas...
Parabéns pelo blog
o falcão

Paulo disse...

Austeriana, claro que com a multidão de professoares diariamente triturados e massacrados pela teimosia de um engenheiro arrogante (e um golpista preguiçoso enquanto "estudante"), não deve haver nenhum português que não esteja próximo duma situação como a que é narrada por Luisa Costa Gomes. Em Março, aquando do primeiro grande protesto, escrevi num post no Marcas "Hoje fui professor". Acho que é uma afirmação que posso contiuar a fazer todos os dias.
Quanto ao romance, descubra-o, sim, acho que vai gostar.
MJFacão, agradeço a visita e seja muito bem vinda. Conheci o seu falcão de jade e fiquei seguidor. Foi um prazer lê-la e cumprimento-a pela enorme figura de cidadão que foi seu Pai.