31 dezembro 2009

Feliz 2010

La Boca, um lugar que não agradava a Borges

Conta Adolfo Bioy Casares: «Não sei porquê, mas Borges tinha um desprezo por La Boca. Durante anos eu não fui a esse bairro por causa de Borges. E uma vez fui e achei que era lindíssimo» (Adolfo Bioy Casares, em entrevista com Carlos Aberto Zito).

A manhã quente de Verão conduz-nos por este bairro rente ao estádio do Boca Júniores (La Bombonera), verdadeira catedral que tem como Santo maior o que aqui nasceu e dá pelo nome de Diego Maradona.
O bairro La Boca foi fundado por gente que para aqui emigrava e que, chegados por mar, olhavam a cidade através do desemboque (La Boca) do pequeno rio que a percorre e por onde chegariam a terra.
Sítio de genoveses que nos idos oitocentos fundaram aqui uma república independente da Argentina dos terratenientes, mas ligada à sua Itália reunificada.
As construções antigas, de madeira e chapa, foram sendo pintadas com restos de tinta fornecida (quantas vezes sem o saberem) pelos estaleiros de reparação de navios, criando uma original e fascinante composição de corres garridas. Visível por todo o bairro predomina na Rua Caminito.

A ligação óbvia ao tango produz uma emoção especial a quem chega e é essa mistura mágica de dançarinos de rua com malabaristas, pintores, artesãos, actores e actrizes que nos interpela, seduz e transporta.
Fotografia: C.

30 dezembro 2009

Dança comigo, Buenos Aires



O tango serpenteia pelas ruas de Buenos Aires. Espreita às esquinas, malandro e provável, sensual e decadente. De Gardel a Piazzola, está no andar das mulheres e nos gestos marialvas dos mancebos ou dos séniores dépassés e nostálgicos.
Na cidade que acolhe Dakar, que espelha modernidade, cultura e memória, tem índio, muita França e Espanha, obviamente.
Está-se bem. Grandes árvores protegem o nosso espanto, edifícios magníficos contam histórias de prata. Há problemas que se pressentem: a miséria apanha-nos de repente, bate-nos na cara.
Muito calor, chuva reparadora e apressada, a vivacidade nos passos de doze milhões de almas tangueiras, sensuais e laboriosas. Cidade promissora, queres dançar comigo? O teu tango é rápido e lento, um abraço que envolve e aproxima. É alegre, nostálgico e trágico. Um par com individualidade e compromisso, rebeldia e excesso, passeia e avança, rodopia, surpreende, expulsa e segura.
Universo total e restrito. Amor e morte, paixão, vida, tristeza e alegria.

Fotos de C.

28 dezembro 2009

A cidade, a livraria, o teatro e tudo


A cidade alberga, na sua imensidão, 12 milhões de habitantes.
Não intimida nem exclui o viajante. Antes, acolhe. Nos aromas, nas cores, no calor intenso e na alegria das pessoas.
E depois, um lugar que transforma edifícios de teatro decadentes em
livrarias pujantes, tem de ser um sítio onde nos sentimos felizes.

23 dezembro 2009

...porque a única verdade é que vivemos

--------*

« [...] coisas como o sentido da vida, a busca de uma transcendência, a morte e a passagem do tempo, o conflito das gerações e por aí fora, não têm mais importância do que pôr e tirar o chapéu, beber um copo de água, fumar um cigarro, dar uma gorjeta, colher uma flor ou coçar o nariz. A vida passa-se a todos os níveis e porventura mais nos que não conseguimos nomear. Ninguém vale mais que o outro, tudo conta e de tudo depende cada destino. Cada silêncio tanto como o que se diz. O infinitamente grande só se vê com um microscópio. Porque a vida é assim. [...]
Eu ainda choro com esta sensação de vida. Ainda não desisti de ser apaixonado. Já sinto passar o tempo, mas ainda não quero chegar à idade da sabedoria. »

Luís Miguel Cintra
Foto de Stefano Corso
* John Firmin - Harlem Nocturne

22 dezembro 2009

Bom Natal


Com este lindíssimo postal enviado por Luís Darocha, um desenho expressivo, cheio de alegria e significado, como é hábito na sua pintura:
Um abraço a todos, o desejo de Paulo, C. e Clara de um Bom Natal, isto é , um bom renascimento.

21 dezembro 2009

Hipátia de Alexandria

Hipátia nasceu em Alexandria por volta de 370 D.C.. Era filha de Theon, um matemático conhecido e respeitado.
Estudou em Atenas durante a adolescência e, quando voltou à sua cidade, tornou-se professora da Academia de Alexandria. Dedicava-se à matemática, à filosofia e à astronomia.
Vivendo numa época de grandes controvérsias e numa cidade que estava no centro de grandes debates religiosos, defendeu sempre o aprofundamento do conhecimento e ensinou os alunos a não permitirem que a crença fosse impeditiva da evolução da ciência.
Criou alguns instrumentos usados na Física e na Astronomia e desenvolveu fundamentadas críticas à teoria Geocêntrica de Ptolomeu, que considerava a Terra o centro do Universo em torno da qual rodavam todos os outros corpos celestes.
A obra de Hipátia, ou Hipácia, foi practicamente toda destruída com a Biblioteca de Alexandria.
O seu drama foi o de ter vivido num tempo de ascenção da intolerância e do obscurantismo nos lugares onde antes floresciam o pensamento e a cultura. Era uma intransigente defensora da liberdade do pensamento e do culto da dúvida num tempo de dogmatismo e ortodoxia religiosos.
Por ensinar que o Universo era regido por leis matemáticas, por ser livre e por ser mulher, foi considerada "herética" e condenada à morte por um bispo cristão que fora seu aluno na Academia.
Atacada na rua, foram-lhe arrancados os braços e as pernas e o seu corpo queimado numa pira .
O bispo Cirilo, mais tarde santificado, terá considerado que, assim, o Sol andaria à volta da Terra e tudo ficaria no seu lugar.

O filme Ágora, recentemente estreado, é uma fantástica narrativa que homenageia esta mulher, a filosofia e o pensamento livre.


20 dezembro 2009

God Bless The Dreamers!!!

--*















O sonhador pode ser tolo
pode ser estúpido
pode ser ingénuo.
Não aprende e erra,
recalcitra,
volta a sonhar.

O sonhador insiste,
resgata o que ficou
do sonho que lhe chega,
que não acabou.

Ah!, mas é aqui que quero estar. Com outros sonhadores do meu país.

* Supertramp - Dreamers
Pintura de Eric Fischl

19 dezembro 2009

Um Povo


Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas; um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai; um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é bom, e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que um lampejo misterioso da alma nacional, reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta. Uma burguesia, cívica e politicamente corrupta até à medula, não descriminando já o bem do mal, sem palavras, sem vergonha, sem carácter, havendo homens que, honrados na vida íntima, descambam na vida pública em pantomineiros e sevandijas, capazes de toda a veniaga e toda a infâmia, da mentira à falsificação, da violência ao roubo, donde provém que na política portuguesa sucedam, entre a indiferença geral, escândalos monstruosos, absolutamente inverosímeis no Limoeiro. Um poder legislativo, esfregão de cozinha do executivo; este criado de quarto do moderador; e este, finalmente, tornado absoluto pela abdicação unânime do País. A justiça ao arbítrio da Política, torcendo-lhe a vara ao ponto de fazer dela saca-rolhas. Dois partidos sem ideias, sem planos, sem convicções, incapazes, vivendo ambos do mesmo utilitarismo céptico e pervertido, análogos nas palavras, idênticos nos actos, iguais um ao outro como duas metades do mesmo zero, e não se malgando e fundindo, apesar disso, pela razão que alguém deu no parlamento, de não caberem todos duma vez na mesma sala de jantar."
Guerra Junqueiro, 1896

Qual Obama, Lula é que é líder



O dinheiro que está sendo colocado na mesa é um pagamento pela emissão de gases-estufa feitas por dois séculos por quem teve o privilégio de se industrializar primeiro...(Aqui)
... Não é uma tarefa fácil, mas foi necessário tomar essas medidas para mostrar ao mundo que, com meias palavras e com barganhas, a gente não encontraria uma solução nesta Conferência de Copenhague... (Aqui)

A intervenção (pública)do Presidente do Brasil, revelou um estadista com um discurso ideológico sério, firme e carregado de futuro para os povos da América Latina, África e Ásia. É de supor que essas fossem as posições assumidas nas reuniões preparatórias onde as "grandes potências" (poluidoras) quiseram aprovar acordos da (sua) conveniência.
Se não foi possível saírem conclusões sérias desta reunião, é porque ainda não houve força suficiente, mas haverá certamente nos próximos anos, porque a história não pára.

17 dezembro 2009

No balanço de 2009, este o melhor filme que vi.



O envelhecimento, o abandono e a solidão nas grandes cidades, a xenofobia, a descoberta do outro e o reencontro connosco, tudo tratado de forma magistral por um dos maiores realizadores de cinema actuais (que acha "apenas" ser um bom contador de histórias).
Jamie Cullum (1979) cantor, pianista e compositor. Fabuloso, um nome a fixar.

(..Realign all
The stars
Above my head
Warning signs
Travel far
I drink instead
On my own
Oh,how I've known
The battle scars
And worn out beds
Gentle now
A tender breeze
Blows
Whispers through
A Gran Torino
Whistling another
Tired song...)

Ai, Um Sismo!


De repente, a cama abana com violência.
A cadela desata a ladrar e a correr.
A parede oscila.
Sim, foi um sismo de 5-7 na escala de Ritcher.
Parece que o epicentro foi perto de Faro...Uffff!
Fica tudo tão urgente, tão pequeno,tão mesquinho. À espera, será que repete?
Fica aqui este relato.
Já vi pior, em 69, bem pior.
Agora está tudo em paz.

15 dezembro 2009

Encontro com a solidão

Durante muito tempo pensei que não sabia o que era a solidão e, como todas as pessoas que não sabem o que é, acabei por escrever sobre ela, como é evidente.

Acho que um dia aprendi o que era

Eu moro num bairro pobre, um bocadinho de uma aldeia dentro de Lisboa, com merceariazinhas, padariazinhas, cafezinhos, pessoas pobres, a maior parte delas velhas, pequenos comércios, pequenos marginais, inclusive pequenos travestis e costumo comer nos restaurantes pequeninos que há ali à volta.
A um desses restaurantes vai jantar às vezes uma Senhora, uma actriz de teatro, que eu não conhecia, uma actriz do tempo do António Silva, do Vasco Santana, da Beatriz Costa, que mora na Estefânia e vai a pé, à hora do jantar, já com certa dificuldade em andar, e senta-se muito coquete, sempre muito bem vestida, com colares, anéis, o penteado armado com laca e come com gestos preciosos, cirúrgicos, cheia de mindinhos – há pessoas em que todos os dedos são mindinhos, têm uma delicadeza aérea de mindinhos – e então as mãos dela mexem nos talheres como se estivessem dançando com eles.
Eu perguntei ao dono do restaurante – que é assim um Senhor que foi louro e de olhos azuis, conserva os olhos azuis, mas perdeu o louro, que se chama Arménio e que poderia ter competido com o Vergílio Teixeira nos filmes portugueses dessa época e que é extraordinariamente bem-educado, extraordinariamente delicado – perguntei”Quem é?” e ele disse-me “é fulana tal, que era uma grande actriz e continua a vir aqui jantar. Sabe, ela continua a deitar-se às duas da manhã porque continua ainda no tempo da sua glória teatral, em que os artistas na época se deitavam tarde e então fica a fazer não sei o quê e só vai para a cama a essa hora, mantém o mesmo horário dos seus tempos de glória”. E estava ali a comer, sozinha. Dois ou três dias depois, entrei no restaurante, ela estava lá e, não sei, foi um daqueles impulsos que todos nós temos às vezes, fui ter com a Senhora e disse-lhe “dá-me licença que lhe beije a mão?” Ela estendeu-me a mão, imperial, de princesa, que cheirava bem ainda por cima, e que eu beijei e depois pedi licença para me sentar e ficámos a falar e a certa altura disse “ a Senhora tem um sorriso tão bonito. Importa-se de me fazer um sorriso?” E ela, toda arranjada, olhou para baixo e eu reparei que estava a tirar da carteira o espelhinho para ver se estava bem pintada e então tirou um tubo e concertou o bâton até fazer uma boca perfeita, em forma de copa de carta de jogar, só então é que levantou os olhos para mim, olhou para mim e sorriu. Eu tinha a impressão que aquele sorriso estava dentro de uma lágrima e fiquei com a certeza de que não há nada mais bonito do que um sorriso dentro de uma lágrima.

Foi, até hoje, o sorriso mais bonito que me deram, o mais bonito que eu vi.

E enquanto ela sorria, era tão engraçado porque de repente era uma rapariga nova, de repente tinha dezasseis, dezassete, dezoito anos, as rugas desapareceram, o cabelo pintado passou a ser natural, os gestos dela ficaram fáceis, os olhos eram uns olhos de uma menina coquete, numa espécie de flirt, num jogo de sedução. E depois, quando o sorriso acabou, a menina desapareceu, os dezasseis anos desvaneceram-se, apareceram rugas, voltou a ficar corcovada na mesa e voltou a estar diante de mim uma actriz já muito idosa que fica acordada até às duas da manhã, a lembrar-se, diante da televisão apagada, dos seus tempos de glória.

António Lobo Antunes, in Viver mais, viver melhor, Fórum Gulbenkian Saúde
Foto: Diane Arbus

14 dezembro 2009

Blogger


Por que escrevemos em blogues?
Por que nos encontramos aqui regularmente, concordando, discordando, aplaudindo,reagindo?
Que coisa é esta de procurar imagens, inserir um texto, nosso ou de outrém?
O que nos leva, noite dentro, a ficarmos por aqui e a tratarmos por tu nós-personagem, nós-cidadão, nós- íntimo?
Que coisa é esta que nos impele a partilhar, confessar, escolher?
Esta a pergunta que vos faço.

13 dezembro 2009

Homenagem



Edson Cordeiro (1967) é um extraordinário cantor brasileiro de formação clássica.
Começou a carreira no teatro infantil e, em 1983, participou da ópera rock Amapola. Em 1988 foi actor e cantor na versão brasileira da ópera-rock Hair. Teve um enorme êxito e apoio da crítica nos anos 90. O seu ecletismo tem levado a que grave desde sambas a árias de ópera. Em 2008 iniciou o projecto “The Woman’s Voice" – A Voz da Mulher. Nele, Edson Cordeiro homenageia uma das suas grandes inspirações: a voz feminina. Neste contexto, interpreta grandes cantoras, entre elas: Billie Holiday, Yma Sumac, Shirley Bassey, Zarah Leander, Edith Piaf, Madonna e, naturalmente, brasileiras: Carmen Miranda, Elis Regina e Dalva de Oliveira.
Está actualmente em digressão por Portugal.

11 dezembro 2009

nós por cá, todos bem




O Governo irlandês adoptou medidas drásticas para controlar a despesa pública no orçamento para 2010 e decidiu reduzir salários a professores, enfermeiros e polícias. Está também prevista a redução de prestações da segurança social a desempregados e a famílias com filhos.
O Orçamento do país, apresentado ontem ao fim do dia, prevê uma redução global da despesa de seis mil milhões de euros nos próximos dois anos, noticia hoje a imprensa internacional. O objectivo mais vasto é conseguir uma redução do défice público de 11,7 por cento este ano para 2,9 por cento em 2014.
A Irlanda enfrenta este ano a maior recessão da zona euro, com uma previsão de recuo do PIB da ordem dos oito por cento. O pais pode mesmo sofrer três anos seguidos de recessão: depois de no ano passado ter tido um recuo de 2,3 por cento do produto, para o próximo a previsão é idêntica.
Esta recessão, que é também a maior da sua história moderna, pôs a Irlanda a braços com uma paralisa do mercado imobiliário e com um sistema bancário à beira do colapso.
O salário dos funcionários públicos será reduzido em dez por cento.
Para dar o exemplo, o primeiro-ministro vai reduzir o seu próprio salário em vinte por cento e o dos seus ministros em 15 por cento.
O subsídio às crianças vai ser reduzido para 16 euros mensais, o que, juntamente com cortes nas prestações para os desempregados, vai permitir poupar 760 milhões de euros em despesas da Segurança Social no próximo ano.
O ministro das Finanças disse também que alguns impostos podem aumentar em 2011 e que os serviços públicos terão um corte de mil milhões este ano.
Fonte: publico.pt em 10/09/2009 (ontem)

A leitura do site do Público hoje , quando alguns países de economia mais débil na Europa discutem as consequências da crise e algumas das complexas formas de a ultrapassar, tem como destaques noticiosos os seguintes:

- PS quer discutir casamento gay antes do Orçamento



- Ex Gestores dos CTT acusados de lesar empresa em 13,5 milhões


- Vara reafirma inocência e insiste na libertação do segredo de justiça


- Eventual suspensão de Lopes da Mota não tem efeitos imediatos


- Ministra garante que financiamento de "Magalhães" decorreu "de acordo com a lei"


- PSD/Madeira tenta que Lei de Finanças Regionais passe sem votação

(Nós, entretidos com as nossas coisinhas, à espera que os problemas se resolvam sozinhos).
Imagem: Aqui

08 dezembro 2009

Aminetu Haidar

Há 22 dias em greve de fome, a cidadã saraui Aminetu Haidar renunciou hoje a toda a atenção médica, incluindo a do médico que a tem vindo a acompanhar.
A 13 de Novembro, Aminetu Haidar, ex-prisioneira politica e activista dos Direitos Humanos, foi impedida de desembarcar do avião pelas autoridades marroquinas no aeroporto de El Aaiun.
Regressava de Nova Iorque onde recebera o prémio da “Coragem Civil 2009” da fundação John Train.
A razão "oficial" da interdição para desembarcar em Marrocos, seguida de interrogatório em isolamento e expulsão do país foi a recusa em se considerar marroquina nos documentos de entrada no país.
Actualmente no aeroporto de Lanzarote, para onde foi expulsa, está decidida a prolongar o protesto que é, agora, um combate que alastra pelo mundo.
Um juiz, um médico, polícias e um interprete deslocaram-se ontem ao aeroporto de Lanzarote para examinar o estado de saúde de Haidar. No momento em que foi confrontada com a visita, a activista disse Não quero receber mais cuidados médicos. Sou dona da minha vontade e dos meus actos.”
Talvez o juiz, o médico, o intérprete e todos os polícias não saibam, mas a história ensina que mais tarde ou mais cedo o seu acto será reconhecido e vitorioso.

07 dezembro 2009

Os meninos de Bhopal

Em Bhopal, há 25 anos que nascem meninos e meninas sem lábios, nariz, orelhas. Alguns sem mãos.
Na noite de 3 de Dezembro de 1984, mais de 27 toneladas de gás venenoso rebentaram um tanque de armazenamento na fábrica de pesticidas da Union Carbide, na cidade.
A inalação do gás provocou a morte imediata de 8.000 pessoas que a essa hora dormiam (afogadas no sangue dos pulmões desfeitos, segundo testemunhos).
Desde o acidente, calcula-se que tenham ocorrido aproximadamente mais 20.000 mortes em resultado desta tragédia.
Existem, entretanto, cerca de 390 toneladas de químicos tóxicos no subsolo, abandonados pela empresa Union Carbide, responsável pelo desastre. Estes poluentes continuam a afectar a água de toda a região
Há múltiplos estudos que revelam ali a presença de mercúrio, niquel e outros tóxicos, bem como níveis perigosos de toxinas no leite das mulheres que amamentam.
Os sobreviventes e as crianças entretanto nascidas continuam a sofrer de doenças, não só as que decorrem de terríveis malformações congénitas, mas também o cancro e a tuberculose.
Os sobreviventes desenvolvem uma ampla campanha contra o esquecimento do seu drama, com maior visibilidade agora que se cumprem 25 anos sobre o desastre (http://www.bhopal.net/), mas Bhopal é tão longe...


06 dezembro 2009

exigências de um engenheiro

- Bom dia senhor engenheiro.
- Bom dia, Lena. Traga-me um café curto em chávena escaldada... e diga-me, tem sonhos?
- Tenho, sim, mas não são de hoje...
- Ah, então não quero.

05 dezembro 2009

E como seria... se uma casa sonhasse?



Parece que o conceito do 555 KUBIK project se baseou exactamente na ideia de responder a esta pergunta. No intuito de romper com as rígidas tradições da arquitectura alemã, a Urbanscreen, sob a direcção artística de Daniel Rossa, criou uma incrível projecção sobre a fachada do Kunsthalle de Hamburgo, na Alemanha. Conjugando a constituição do interior do próprio museu com gráficos e movimentos projectados em 3D, sobre a fachada, foi criado um efeito de transparência e reflexibilidade que descreve o espaço e nos leva a percepcioná-lo por meio do próprio edifício. Como se desvelasse a alma. Ou falasse do que sonha enquanto dorme e ninguém o vê.
Um must da capacidade criativa.

04 dezembro 2009

un bello paese, la Torre pendente di Pisa è a posto e il Colosseo anche



A sequência dos factos é conhecida: Marco Travaglio, jornalista do jornal L'Unita escreveu e publicou em 2008 um artigo sobre o presidente do Senado, Renato Schifani onde fazia refeência ao facto dos perfis oficiais deste senador nunca fazerem referência das ligações deste político com a Máfia.
O escritor Antonio Tabucchi colocou-se ao lado do jornalista em artigo também publicado no mesmo jornal, referindo expressamente, no entanto, que o senador tinha sido absolvido, apesar das suspeitas. Renato Schiafani, segunda figura do estado italiano e suporte político de Berlusconi, processou o escritor pedindo uma indeminização de 1,3 milhões de euros por "danos de imagem".
Tabucchi considera que o senador é um homem de "pouca sorte", pois ao longo de 15, 20 anos fundou empresas "sem nunca se aperceber que o fazia com mafiosos, presos sempre que ele acabava de sair" dessas empresas (
Aqui).
O julgamento, entretanto, teve início em Pisa em Maio deste ano.

Recentemente, foi colocada na internet uma petição a favor de António Tabucchi. 
Entre os primeiros subscritores encontram-se os cineastas Theo Angelopoulos, Costa-Gravas, os escritores Philip Roth, Jorge Semprun e Fernando Savater, bem como os Prémio Nobel José Saramago e Orhan Pamuk.
Referindo-se ao seu país (embora fosse possível estender o comentário a outros) Tabucchi comentou: assim vai a Itália, um belo país. Pelo menos, a torre de Pisa está no lugar, o Coliseu também.

(para assinar a petição clicar no link )

03 dezembro 2009

Dudamel, fruto da Utopia



Nos anos 70 o maestro venezuelano José António Abreu iniciou um profundo trabalho cultural, criando orquestras nas zonas muito pobres de Caracas, de forma a promover integração social a jovens excluídos. Os resultados positivos foram tão grandes que hoje há cerca de 250000 jovens abrangidos por esta exemplar intervenção social e política (El Sistema).
A Orquestra Simón Bolívar é a face mais visível deste programa e a presença do maestro Gustavo Dudamel, ele próprio um "produto" deste programa, dá-lhe uma dimensão e visibilidade planetária.
O "Sistema" na Venezuela , que é, há 34 anos, uma rede de ensino musical gratuito após o horário escolar, com fornecimento de instrumentos, levou ao aparecimento de 30 orquestras profissionais (havia 2 antes do "Sistema" ser criado).





Gustavo Dudamel, foi retirado à rua pelo Sistema e é considerado um dos maiores maestros da actualidade. A forma como conduz as orquestras, sobretudo a "sua" Sinfónica Simon Bolivar, alia uma alegria contagiante com uma competência que o faz ser disputado pelas melhores Sinfónicas de todo o mundo.
Ontem ao fim da tarde dirigiu a Orquestra Juvenil Ibero-Americana, na Gulbenkian. Um concerto cujos lugares não foram suficientes para todos os interessados.

02 dezembro 2009

Deana Barroqueiro


Deana Barroqueiro retira do Velho Testamento todo o trajecto feminino, de mulheres que aprenderam a ser fortes na sua aparente fraqueza, narra as brutalidades a que eram submetidas, num mundo de crueza masculino, aprendendo com a malícia e sensualidade que a autora descreve com elegância e mestria.
São dois Livros: "Contos Eróticos Do Velho Testamento" e "Novos Contos Eróticos Do Velho Testamento (livros Horizonte).

Conheci Deana na apresentação do seu último livro " O Espião De D. João II", uma lição vivíssima e cheia de conhecimento, sobretudo da Época das Descobertas. Irreverente, bem humorada, tem-nos surpreendido com os seus já muitos livros sobre a nossa História.
Começou por ser professora,dinâmica e criativa, e , durante muitos anos levou os alunos a conhecer empenhadamente as épocas e as figuras mais marcantes.
Deana Barroqueiro nasceu em 1945, em New Haven Connecticut, Estados Unidos. Veio para Portugal em criança e viveu sempre em Lisboa. 

30 novembro 2009

Maria Manuela Rama Costa

As vítimas diárias da boçalidade, da arrogância, da selvajaria e do mais abjecto machismo aí estão, nesta merda de sociedade.

 *

Há que discutir, ensinar, reprovar, condenar por todos os meios este nojo. Sem contemplações, sem desculpas nem justificações ou encolher de ombros. Trata-se de uma questão civilizacional que respeita a todos.
(Maria Manuela Rama Costa tinha 35 anos, foi morta dentro duma ambulância quando era transportada para o hospital, onde seria observada para - finalmente - ser formalizada uma queixa contra o agressor. A filha estava no colo, o filho fugido nos pinhais).

* Sequência do filme "Te doy mis ojos",  de Icía Bollaín [Espanha 2003], galardoado com 7 Goyas. Excelentes interpretações e realismo no tratamento do tema. Impossível ficar indiferente.

Vozes da minha memória



A música limpa da alma a poeira de cada dia
(Pablo Picasso)

28 novembro 2009

"infância é um antigamente que sempre volta"*



- Podemos ficar já aqui, não? - ela.
- Não, aqui não podemos, tia... Vamos lá mais para o pé da rotunda.
- Mas não podemos ficar aqui, nesta praia tão "verzul"? - ela sorriu para mim.
- Não, tia, aqui não se pode. Esta tão praia verzul é dos soviéticos.
- Dos soviéticos?! Esta praia é dos angolanos!
- Sim, não foi isso que eu quis dizer...É que só os soviéticos é que podem tomar banho nessa praia. Vês aqueles militares ali nas pontas?
- Vejo sim...
- Eles estão a guardar a praia enquanto outros soviéticos estão lá a tomar banho. Não vale a pena ir lá que eles são muito maldispostos.
- Mas porquê que essa praia é dos soviéticos?- agora sim, ela estava mesmo espantada.
- Não sei, não sei mesmo. Se calhar nós também devíamos ter uma praia só de angolanos lá na União Soviética...


Ondjaki, Bom dia Camaradas, Ed.Caminho, 2001


A infância em Luanda nos anos 80, um tempo de incerteza e muitos perigos, vistos pelo olhar mágico de uma criança.
Uma narrativa assumidamente autobiográfica, que vale também como um relato histórico de um tempo que fundou a Angola de hoje.

*Ondjaki, na apresentação do livro

27 novembro 2009

花样年华 (ou a inspiradora realidade)





Introduction: Despite recent media coverage in the topic of sexless marriage in East Asia, population-based studies examining the absence of sexual activity among nonelderly married individuals are scant. Previous studies have not simultaneously examined sociodemographic, physiological, and lifestyle predictors of sexless marriages.
(....)
Conclusions: Sexless is prevalent among certain subgroups of urban Chinese couples in Hong Kong and the large discrepancy in sexless between married men and women in each age strata suggests a high prevalence of extramarital relationships. Contrary to commonly held beliefs, there was a stronger association between sexlessness and poorer phycological symptoms among females than males. Sexless marriages are an underppreciated phenomenon among urban Chinese individuals.
Sexlessness among married Chinese adults in Hong Kong: Prevalence and assotiated factors.
J. of Sex Med 2009;6:2997-3007


Música: I'm in the mood for love (Casino Royale)

Foto: Aqui

25 novembro 2009

e é assim que nos sentimos de alma lavada

Lemos a notícia, velha como o mundo. Passamos ao lado da boçalidade dos frequentadores de um Café com nome arrepiante, ou da incredulidade das Cassildas das terras de Basto. Fixamos, então, o olhar neste homem e nesta mulher. Órfãos ambos, ele de um sentido para a vida que julgava definitivo; ela, de um colo e de um abraço que a vida lhe roubou quando mais precisava. Sentimos o encontro, adivinhamos o sorriso, percebemos os corações que só abrigaram tristeza, deciframos a escolha e chega-nos a irreprimível vontade de ler um poema de Eugénio ou ouvir uma música de Chet Baker.
Reconciliados com a vida.


24 novembro 2009

"It's a hard life"

Freddie Mercury (5/09/46 – 24/11/91)

Podemos não gostar dos efeitos de alguns clips, mas acho, sinceramente, que o poder interpretativo e a excentricidade, aliados ao dinamismo e carisma da sua estrela maior, fazem dos Queen um marco incontornável da história do rock.
A banda já vendeu mais de 300 milhões de cópias no mundo inteiro e é liderada actualmente por Brian May (guitarrista) e Roger Taylor (baterista). Precursora do rock tal como hoje o conhecemos, Queen foi uma das mais populares bandas britânicas dos anos 70 e 80, com concertos e videoclips magnificamente produzidos. Embora nunca tendo sido levada a sério pelos críticos da sua época, que consideravam a sua música “comercial” (a crítica de hoje considera os Queen como uma das melhores bandas de rock de todos os tempos), a banda tornou-se uma das mais famosas entre o público, justamente graças à conjugação única das complexas e elaboradas apresentações ao vivo e do potencial vocálico de Freddie Mercury.

O vídeo que seleccionei traz-nos nas palavras, a ideia de que, também em matéria de amor, é sempre mais fácil desistir.

It's a hard life
To be true lovers together
To love and live forever in each others hearts
It's a long hard fight
To learn to care for each other
To trust in one another right from the start
When you're in love


Este post é dedicado a um jovem fã incondicional dos Queen que, de vez em quando, se passeia cá por casa (e a cantar "Mama, carry on, carry on").

22 novembro 2009

Estação De Santa Apolónia


Já foi assim: Reparem na estrutura de ferro, tão expressiva.
Hoje não é como a foto mostra. Continua lá, imponente e caseira, uma sala de visitas agradável, prática, limpa, quente no Inverno e fresca no Verão. 
Agora tem metro que nos leva para o resto do mundo. E umas esplanadas com direito a vista sobre o Tejo. Parece um filme.
Gosto de Santa Apolónia, das castanhas assadas que fumegam, à saída. Da sombra do Eça que ainda se pressente.
É um lugar onde se chega e de onde se parte.

21 novembro 2009

O corpo como objecto de design

A criação artística tendo como tema e objecto a biotecnologia ou a utilização da investigação científica como expressão artística é o tema da exposição presente na Cordoaria Nacional, até 24 de Novembro - Inside (arte e ciência).
O tema tem ali algumas intervenções muito interessantes, como a de Leonel Moura: Criatividade Artificial; Miguel Chevalier: Flores Fractais ou Philip Ross: Plantas Cibernéticas, todas em torno da utilização dos avanços tecnológicos na criação artística.
Outras obras são, no mínimo, inquietantes, como a de Sterlac, defensor da ideia de que o corpo já não é só um espaço de expressão de ideias ou intervenção social, mas passou a ser também uma estrutura modificável ("the body not an object of desire but an object of designing"). É dentro deste conceito que surge a sua última obra, ainda inacabada, de criação duma terceira orelha no antebraço esquerdo. Quando terminada, esta orelha terá um equipamento que, por bluetooth, coloca na internet todos os sons por ela "ouvidos".


All together now, "to make it better"

Após o sucesso dos primeiros flashmobs , a T-Mobile, sob o mote Life’s for Sharing, convocou centenas de pessoas para comparecem, no dia 30 de Abril de 2009, na Trafalgar Square, em Londres. À hora marcada, 13.500 pessoas estavam lá, receberam os microfones e cantaram o melhor que puderam o tema (já tão esgotado) Hey Jude, dos Beatles.
A faixa parece que ganha, então, uma nova vida e o resultado é emocionante.
Mais uma aposta na ideia de que a propaganda do século XXI não é tanto sobre produtos e serviços, mas sobre pessoas.
Desejo a todos um excelente fim de semana.

20 novembro 2009

O Meu País


O que fizeram ao meu país?
A sério. Sinto-me perdida.
Gostava de ser militar de Abril.
A sério, apetecia-me fazer uma revolução.
Uma revolução pacífica, como a outra, com cravos , ou com rosas, sei lá, com malmequeres, com crisântemos.
Mas uma revolução, por favor, que nos devolva a esperança.
Vamos fazer uma revolução?
A sério, eu preciso mesmo.

19 novembro 2009

reflexão em torno de pandemias e outras exaltações


Neste início do século, sobretudo nas sociedades ocidentais, a doença e a morte são acontecimentos estranhos, misteriosas e, em larga medida e qualquer circunstância, inaceitáveis. Abrimos uma excepção para as doenças terminais em que aceitamos, às vezes exigimos, a morte como forma de alívio ao sofrimento (sobretudo o nosso).
Construiu-se um conjunto de expectativas em torno da saúde e do corpo que se tornaram dominantes na sociedade: esperamos sentir-nos bem, sem incapacidades, dores ou desconforto até muito tarde. Sempre, se possível.
É intolerável a morte de uma criança e espera-se que todas tenham uma infância sem doenças, que as mulheres tenham filhos sem complicações e que qualquer intervenção cirúrgica seja sempre bem sucedida.
O facto de, quase sempre, estas expectativas se concretizarem faz com que a "verdade" de reforce.
A saúde, o bem estar e a ausência de sofrimento tornaram-se uma forma de religião em que o falhanço e o inexplicável não é aceite, justamente porque a Medicina se tornou uma crença.
E não é.

(É do conhecimento público a especulação em torno das recentes mortes fetais e da sua utilidade na abertura de telejornais. Sente-se, como sempre, a necessidade de encontrar a causa, a razão, a culpa para o incompreensível que se rejeita; para mais, com o drama de uma previsão de mais 30 mortes até ao fim de Dezembro.
A resposta das autoridades, sobretudo depois de terem explorado o medo até à nausea, é a negação pura e simples. Nada que ponha em causa os seus dogmas. É outra crença.)
Pintura: The Doctor, Luke Fildes (O quadro inspira-se no momento em que o médico observava Philip, o filho do pintor, pouco antes da sua morte, no Natal de 1877).

E não há meio de porem os ovos...Irra!!!




Mais Savage Chickens aqui

18 novembro 2009

Duas extraordinárias mulheres, um momento único.



Alison Balsom (1978), trompetista, Sarah Connolly (1963), mezzo-soprano, George Gershwin (1898 – 1937), a Orquestra Sinfónica da BBC, os Concertos Promenade e a prova (se preciso fosse) de que só existem dois tipos de música, a boa e a má.
Apreciem, ou, como diriam no Royal Albert Hall, enjoy!!.


O Violoncelo De Sarajevo


Autor:Steven Galloway
Editorial Presença
Foto:MikhailEvstavief

O Cerco de Sarajevo foi o mais longo na história da guerra moderna, estendendo-se de 5 de abril de 1992 até 29 de fevereiro de 1996. Cerca de 10 mil pessoas foram mortas e outras 56 mil ficaram feridas, segundo as Nações Unidas. No dia 27 de maio de 1992, às quatro horas da tarde, uma série de morteiros atingiu um grupo que esperava para comprar pão atrás de um mercado em Vase Miskina, deixando 22 pessoas mortas e pelo menos 70 feridas. Diante disso, Verdran Smailovié, um renomado violoncelista local, resolveu tocar, pelos próximos 22 dias, sempre às quatro da tarde, o Adágio em sol menor de Albinoni, no exacto local onde tudo ocorrera, em homenagem aos mortos. Foi esta tragédia real e seu conseqüente acto de reverência, compaixão e coragem que foram transpostos ao livro e serviram de inspiração para o autor construir o personagem do violoncelista.

16 novembro 2009

muito louco de ser feliz

A TV Cultura é uma emissora de televisão brasileira com sede em São Paulo. É uma televisão pública, fundada em 1969, que tem, sobretudo, conteúdos educativos e culturais.
Os arquivos do programa Radiola, da TV Cultura são importantes registos da história do Brasil e da sua música.
O YouTube tem os mais importantes: Elis Regina, Chico Buarque, Caetano, Luis Gonzaga e tantos outros.
Este que aqui fica é, na minha opinião, um dos mais significativos. Pela beleza da filmagem e pelas palavras, ditas e cantadas, deste homem extraordinário.


15 novembro 2009

"...mas se a gente quiser, sei que vai dar pra mudar o final"

Com o espectáculo carnavalesco da política em Portugal, vamo-nos afeiçoando cada vez mais ao negativismo convicto que sempre nos caracterizou; que nos torna nostálgicos, nos envenena e nos tolhe a lucidez. Aberta a caixa de Pandora, a esperança é o que fica para não desistir. E a vontade.




14 novembro 2009

Pedro Alvim (As Cheias em Novembro de 1967)



Muitos consideram esta uma das melhores crónicas que se escreveram. O autor é o poeta e jornalista (Diário de Lisboa, 1969), já falecido.Fica aqui a sua memória.

Os mortos e os fósforos

Era ao cair da tarde – e havia mortos.Todos muito juntos, enlameados,compridos. Alinhados, distanciados para sempre, ali aguardando o arrumo definitivo. Ali, ali no cimento frio de um quartel de bombeiros, no fim de um domingo de Inverno.Eu estava ao telefone, um telefone de moedas de cinco tostões, a dar para o jornal o número de mortos, os seus nomes, as suas idades.Ia escurecendo, escurecendo, e eu já não via os nomes escritos à pressa, abreviados, secos.
Um bombeiro, uma pilha nas mãos, tentava auxiliar a minha leitura, uma leitura triste, sincopada, hesitante de quando em quando. Eu sabia que tinha os mortos todos atrás de mim, indiferentes, quietos, não se importando absolutamente nada que lhes trocasse os nomes. Mas eu não queria cometer o mínimo erro, o mais pequeno deslize.
“Se tu és João” – dizia para mim – “és João. E se o teu nome é Mário, o teu nome será Mário. E caso te chames Rosa, não te chamarei Lucília.”
E teimava, teimava em ser exacto, pedia, pedia ao bombeiro que mantivesse o foco da pilha sobre o papel em que tinha escrito os nomes dos mortos. E carregava nas moedas de cinco tostões, mantinha a ligação telefónica, identificava-os um a um.
O tempo passava, o tempo passava sem luz eléctrica, e eu estava sempre ali ao telefone, e os familiares dos mortos iam entrando, (que longa bicha!), identificavam os mortos, os nomes dos mortos eram-me dados, e eu dava os nomes dos mortos ao jornal.Ouvia o choro dos vivos, ouvia o silêncio dos cadáveres, ouvia a noite lá fora – Depressa! Depressa! – diziam-me do jornal – Depressa que é para a terceira edição!
Iam-me faltando as moedas de cinco tostões, sentia-me aflito, pedia que me trocassem moedas de cinco, dez escudos.E os nomes dos mortos continuavam na minha boca, lidos um a um, o mais exactamente possível.
Como um preito de homenagem.
Como um choro.
Chegavam aos meus ouvidos pormenores da tragédia, da chuva, da lama.Eu carregava nas moedas de cinco tostões, afligia-me com o seu desaparecimento contínuo e, automatizado já, ia lendo os nomes dos mortos à luz da pilha.
Escuridão total.
– Acabou-se a carga! – disse o bombeiro.
O suor tomou-me o corpo todo – e os meus dedos amarfanhavam o papel com os nomes dos mortos ainda não transmitidos.
E agora? E agora? Agora que a pilha tinha dado de si – que fazer?
– Acendam fósforos! – gritei – Estes fósforos!
E assim foi: à chama tremida do enxofre, dos fósforos, acesos um a um, fui lendo o nome dos mortos que restavam, que estavam ainda no papel, sem o mais pequeno deslize.
“Se tu és João” – dizia para mim – “és João. E se o teu nome é Mário, o teu nome será Mário. E caso te chames Rosa, não te chamarei Lucília“.
Quando, finalmente, abandonei o telefone, ganhei a rua, respirei a noite, apeteceu-me loucamente um cigarro, um cigarro que me turvasse, um cigarro para esquecer aquilo tudo.Meti, os pulmões ansiosos, um cigarro na boca – mas não pude, não pude fumar, não pude acender o cigarro: os mortos tinham queimado todos os meus fósforos.

PEDRO ALVIM
Foto:Aqui

Os livros são objectos transcendentes

Tenham um óptimo sábado, ao som desta chuvinha intermitente que convida ao sofá e à preguiça. E, já que temos falado em livros, tomem um por companhia. É que as notícias dos semanários não devem trazer novidade alguma... E os livros sempre são "modos de fazer mundos", como dizia o Goodman.


(...)
Mas os livros que em nossa vida entraram
São como a radiação de um corpo negro
Apontando pra a expansão do Universo
Porque a frase, o conceito, o enredo, o verso
(E, sem dúvida, sobretudo o verso)
É o que pode lançar mundos no mundo.
(...)

Tropeçavas nos astros desastrada
Sem saber que a ventura e a desventura
Dessa estrada que vai do nada ao nada
São livros e o luar contra a cultura.

Os livros são objetos transcendentes
Mas podemos amá-los do amor táctil
Que votamos aos maços de cigarro
Domá-los, cultivá-los em aquários,
Em estantes, gaiolas, em fogueiras
Ou lançá-los pra fora das janelas .
(Talvez isso nos livre de lançarmo-nos)
Ou ­ o que é muito pior ­ por odiarmo-los
Podemos simplesmente escrever um
(...)

Vale a pena ler aqui uma concisa mas enriquecedora abordagem ao álbum "Livro", de 1998.

13 novembro 2009

entre dois sorrisos, uma declaração de amor


...Um labirinto de corredores e estantes repletas de livros subia da base até à cúspide, desenhando uma colmeia tecida de túneis, escadarias, plataformas e pontes que deixavam adivinhar uma gigantesca biblioteca de geometria impossível. Olhei para o meu pai, boquiaberto. Ele sorriu, piscando-me o olho.
- Bem-vindo ao Cemitério dos Livros Esquecidos, Daniel.
Salpicando os corredores e plataformas da biblioteca, perfilavam-se uma dúzia de figuras. Algumas delas voltaram-se para cumprimentar de longe, e reconheci os rostos de diversos colegas de meu pai do grémio de alfarrabistas. Aos meus olhos de dez ano, aqueles indivíduos afiguravam-se uma confraria secreta de alquimistas a conspirar nas costas do mundo. O meu pai ajoelhou-se ao pé de mim e, sustendo-me o olhar, falou-me com aquela voz leve das promessas e das confidências.
- Este lugar é um mistério, Daniel, um santuário. Cada livro, cada volume que vês, tem alma. A alma de quem o escreveu e a alma dos que o leram e viveram e sonharam com ele. Cada vez que um livro muda de mãos, cada vez que alguém desliza o olhar pelas suas páginas, o seu espírito cresce e torna-se forte.(...) Quando uma biblioteca desaparece, quando uma livraria fecha as suas portas, quando um livro se perde no esquecimento, os que conhecemos este lugar, os guardiães, asseguramo-nos de que chegue aqui.(...) Na loja nós compramo-los e vendemo-los, mas na realidade os livros não têm dono. Cada livro que aqui vês foi o melhor amigo de alguém. Agora só nos têm a nós, Daniel. Achas que vais poder guardar este segredo?
O meu olhar perdeu-se na imensidade daquele lugar, na sua luz encantada. Fiz um sinal de assentimento e o meu pai sorriu.

Carlos Ruiz Zafón, A Sombra do Vento, Dom Quixote, 2008
Foto: Trinity College Old Library, Dublin


A Sombra do Vento é um livro maravilhoso. Uma fantástica narrativa sobre livros, o encanto mágico que têm e nos trazem. No excerto, destaco a maravilha que é ser-se levado a amar os livros desde que se começa a olhar o mundo e os homens.
A leitura transforma-nos porque nos ensina e acrescenta.

Julgamento de Zé do Telhado


Sobre o julgamento deste histórico e Robin-Woodesco e simpático larápio:

O julgamento de Zé do Telhado iniciou-se em 25 de Abril de 1859, com acusação pública em 9 de Dezembro do mesmo ano. Foi condenado na pena de trabalhos públicos por toda a vida, na costa ocidental de África e no pagamento das custas. Esta pena foi mantida pelo Tribunal da Relação do Porto, cujo acórdão de sentença substituíu a expressão "costa ocidental de África", por "Ultramar".
Por acórdão da mesma instância, foi comutada a pena aplicada na de 15 anos de degredo para a África Ocidental, que contou desde a data de publicação do Decreto de 28 de Setembro de 1863.

A condenação deu como provados os seguintes crimes: tentativa de roubo, na forma tentada, em casa de António Patrício Lopes Monteiro, em Santa Marinha do Zêzere, comarca de Baião, homicídio na pessoa de João de Carvalho, criado de Ana Victória de Abreu e Vasconcelos, de Penha Longa, Baião, roubo na casa de referida senhora (Casa de Carrapatelo) de objectos de ouro e prata no valor de oitocentos mil e um conto de reis e algumas sacas com dinheiro, cujo valor a queixosa calculou em doze contos de reis, ainda que revelasse desconhecer os montantes visto que o dinheiro se encontrava na casa mortuária onde jazera, poucos dias antes, seu pai, e, após isso, ela ainda nem sequer lá voltara a entrar, roubo em casa do Padre Albino José Teixeira, de Unhão, comarca de Felgueira, no valor de um conto e quatrocentos mil reis em dinheiro e ainda objectos de prata e outro, outro homicídio na pessoa de um correligionário, ferido num confronto com as autoridades.

Para além de outros crimes de roubo e de resistência à autoridade, foi também condenado como autor e chefe de associação de malfeitores e de tentativa de evasão do reino sem passaporte, com violação dos regulamentos policiais.In "Setúbal na Net"

11 novembro 2009

Os loucos...e os outros



«No primeiro capítulo (...) chego a uma definição de loucura que diverge da preconizada pela Psicologia e Psiquiatria oficiais. A perspectiva destas últimas limita-se a apreciar o comportamento humano apenas com base no respectivo relacionamento com a realidade, o que, obviamente, tem a sua razão de ser. Só que impede, assim, a aproximação a uma patologia menos evidente e mais perigosa, de cujo método próprio a dissimulação faz parte: a loucura que se encobre a si própria e se mascara de saúde mental. Essa não tem dificuldade em ocultar-se num mundo em que o engano e o ardil são comportamentos adequados à realidade.
Ao mesmo tempo que os que já não aguentam a perda dos valores humanos no mundo real são considerados "loucos", atesta-se a normalidade àqueles que se separaram das suas raízes humanas. E é a esses que confiamos o poder, permitindo que decidam sobre as nossas vidas e o nosso futuro. Pensamos que eles têm a atitude certa perante a realidade e sabem lidar com ela; mas o "relacionamento com a realidade" de uma pessoa não é o único critério para determinar a sua doença ou saúde mental.»

Arno Gruen, in A Loucura da Normalidade, Assírio & Alvim, 1995

"Morrem cedo os que os deuses amam"

--*


Vírgula

Eu menino às onze horas e trinta minutos
a procurar o dia em que não te fale
feito de resistências e ameaças — Este mundo
compreende tanto no meio em que vive
tanto no que devemos pensar.

A experiência o contrário da raiz originária aliás
demasiado formal para que se possa acreditar
no mais rigoroso sentido da palavra.

Tanta metafísica eu e tu
que já não acreditamos como antes
diferentes daquilo que entendem os filósofos
— constitui uma realidade
que não consegue dominar (nem ele próprio)
as forças primitivas
quando já se tem pretendido ordens à vida humana
em conflito com outras surge agora
a necessidade dos Oásis Perdidos.

E vistas assim as coisas fragmentariamente é certo
e a custo na imensidão da desordem
a que terão de ser constantemente arrancadas
— são da máxima importância as Velhas Concepções
pois
a cada momento corremos grandes riscos
desconcertantes e de sinistra estranheza.

Resulta isto dum olhar rápido sobre a cidade desconhecida. Mais
E abstraindo dos versos que neste poema se referem ao mundo humano
vemos que ninguém até hoje se apossou do homem
como frágil véu que nos separa vedados e proibidos.

António Maria Lisboa

AML nasceu em Lisboa no dia 1 de Agosto de 1928 e aí faleceu em 1953.
Com Mário Cesariny escreveu Afixação Proibida, um importante manifesto do Surrealismo português que iniciou este movimento em Portugal. Apesar de inserida no Surrealismo, a obra de António Maria Lisboa apresenta uma faceta ocultista e esotérica que a torna particular. Morreu de tuberculose, a 11 de Novembro, com apenas 25 anos, mas a sua curta obra constitui indiscutivelmente um marco na literatura portuguesa. Durante a sua vida, António Maria Lisboa acreditou sempre no Surrealismo como liberdade e poesia totais, como se pode depreender da sua escrita.

* Philip Glass - Mad Rush
Imagem: quadro do surrealista H. Risques Pereira