29 abril 2009

O absurdo mal resolvido...

/233/ Lê hoje, se puderes, o primeiro parágrafo de "O Mito de Sísifo", de Camus. Meu pai teve, aos 35 anos, um amigo íntimo que era Major do Exército. Todas as noites se encontravam no mesmo café. Ele era alto e vigoroso; à mesa nunca deixava que ninguém pagasse as contas; trazia sempre no bolso, conta meu pai, rebuçados para crianças.
Não casou, mas amava as mulheres. Nenhuma em particular. Um dia, com uma Walter 7.65, meteu uma bala na cabeça. Deixou um bilhete: "estava farto de abotoar e desabotoar os botões do dolman". Meu pai leu-o, estupefacto.
Quase 50 anos depois, o meu velhote ainda diz que morrerá sem entender aquilo.
Sebastião Alba in Albas

9 comentários:

clara disse...

Tocante, muito expressivo.

C. disse...

Ler este texto depois de um "dia de cão" é como quem me mata:) :)

Camus viu bem nesse mito o “herói do absurdo” contemporâneo, herói quase marioneta de si mesmo, na relação que mantém com o trabalho. Mas, por ser um herói consciente deste absurdo, carrega consigo a maldição de se ver, quotidianamente, face-a-face com uma condição miserável: a de ter de abotoar todos os dias os mesmos botões do mesmo casaco.
São as nossas pedras. E a horrível rotina.
Eu cá prefiro que a pedra não fique lá no cimo, imóvel. Ela representa, se não outra coisa, pelo menos a minha arte de carregá-la, todos os dias de forma diferente. E se não conseguir isso, hei-de tentar mudar de pedra, que é como quem diz: de botões e de casaco.
Não tenho vocação para mártir nem herói.

Boa marca, Paulo. Valeu.

Paulo disse...

Num magnífico filme de Marco Ferreri "Contos da Loucura Normal", o personagem principal interpretado por Ben Gazarra tem um discurso fantástico (Youtube/Ben Gazarra Style) sobre "style". Nele se defende que tudo na vida tem valor desde que feito com... style.Ou seja a arte de dar um sentido e um significado às coisas, mesmo que absurdamente comuns e repetidas...
Como diz C., a arte de carregar a pedra todos os dias de forma diferente.
Com style! (vejam o clip). Obrigado.

clara disse...

Desculpem, mas desta vez não estou de acordo-os botões, como gesto mecânico, representam a rotina sim, mas não creio que seja essa fissura que o mata-toda a rotina serve para ser quebrada, só que ele não tem essa capacidade e a rotina, em vez de suporte à mudança passa a ser um fim em sim-e aí a perversão!
A rotina é um bem precioso. Quem não a tem, enlouquece.

C. disse...

Mas, Clara: o que eu digo é isso mesmo - "eu cá prefiro que a pedra não fique lá no cimo", só não quero é esgotar-me no próprio gesto, isto é, na repetição como uma maldição. E mudar de botões tb não é mau...Se for preciso.
(O outro suicida enlouqueceu e matou-se. E justificou-se com a rotina.)

E toma lá beijos

clara disse...

Mas é aí , precisamente que discordo,a rotina é necessária, vital e agradável. Ela nos salva, não é um fardo-é um suporte.
Quando a quebras, e tens a pedra, não quer dizer que te salves. Pelo contrário, buscas o desconhecido, porque julgas que debaixo da pedra está o elixir da vida, salvador. Puro engano.
Não é a rotina que nos mata, é a vida, inexoravelmente,necessariamente.
O desespero de Sísifo.

clara disse...

(cont.)
Nada há mais rotineiro que a natureza:as estações do ano,as fases da lua, o ciclo menstrual, a noite e o dia .
Quando a Humanidade dominar a Natureza, aí sim, poderemos ter salvação,mas até lá, o que fazemos é tentar desarrumá-la e ela vinga-se e manda-nos tempestades e vírus.
Por isso, os seres humanos inventaram as religiões, como se fosse melhor estar morto que vivo! A fé, essa utopia, um bálsamo para o sofrimento.
O homem da história matou-se,não por causa dos botões serem sempre iguais, mas porque se sabia condenado.

Paulo disse...

...ou porque não foi capaz de "ver" como é possível encontrar sentido mesmo nos gestos e nos momentos mais rotineiros do quotidiano.A resposta ao absurdo não é o suicídio, mas a revolta (creio ser a proposta de Camus...)ou seja, a incomodidade, o desafio e a procura. Aliás, é surpreendente a avidez com que os homens, perante a iminente chegada da morte, se agarram à vida, mesmo absurda, mesmo que antes se tivessem lamentado do seu vazio. É que esta pode sempre ser mudada e a morte...

clara disse...

Quer dizer, com style.